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Como garrafas lançadas ao mar1

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Certa vez, em uma conversa2 com Hans Ulrich Obrist, Christian Boltanski referiu-se a distribuição da publicação point d’ironie como uma espécie de garrafa lançada ao mar. Qualquer pessoa pode encontrar ou receber. É algo que viaja por toda parte e não sabemos onde ela vai parar. Na maioria das vezes, pode ir para o lixo, mas também você nunca saberá quem fixou-a em uma parede.

Uma exposição num espaço de museu e galeria sabemos mais ou menos quem vai visitar. Uma exposição dentro de uma publicação é algo que está sempre se movendo, encontrando e criando novos públicos. Sua distribuição ou circulação demanda a mesma importância que a sua produção. Ou seja, é preciso criar dispositivos para que esse trabalho possa ser apresentado ou exibido. Além disso, a iniciativa de estabelecer uma publicação como um lugar possível para a produção de uma exposição, acentua a forma expandida de pensar um trabalho de arte. Existe uma quantidade expressiva de trabalhos que não precisam, necessariamente, de paredes, pois são proposições cujo lugar mais adequado para serem mostrados são nas páginas de um livro ou de uma revista, em folhas avulsas ou em cartões, entre outros, como exposições impressas. São múltiplos ou trabalhos que dentro dos impressos encontram seu lugar e que requerem da parte do espectador (leitor) um tempo e um modo diferenciado para serem apreendidos.

Esse foi, seguramente, um dos propósitos que levou Seth Siegelaub, notório realizador de exposições impressas, no período de 1968 a 1972, a editar uma série de exposições em catálogos3. Galerista aos 23 anos de idade, em suas primeiras investidas curatoriais não se limitava simplesmente a dispor obras no espaço físico de sua galeria. Queria mais que isso. Sobretudo, fugir dos clichês ou fazer parodia de si mesmo, evitando repetições ou situações curatoriais cômodas. No pouco tempo de sua existência4, a Seth Siegelaub Contemporary Art realizou exposições onde as pessoas eram convidadas, muito mais que passar pelos trabalhos expostos, a experimentar e discutir sobre os mesmos, num ambiente criado para que estes pudessem ser visualizados adequadamente.

Se alguns catálogos de exposições são possibilidades de prolongar o tempo de visitação de uma mostra, visto que trazem de volta uma experiência, para Siegelaub um catálogo poderia se converter no objeto de referência de um acontecimento efêmero de que é feito uma exposição ou ser o verdadeiro espaço da exposição. Na organização da exposição January 5-315 (1969), por exemplo, Siegelaub desloca procedimentos usuais estabelecidos no sistema de arte, invertendo a relação usual entre os trabalhos expostos e o catálogo. Assim, o ponto focal do projeto foi uma sala comercial, alugada especialmente para essa mostra, e ocupada apenas por uma mesa com vários exemplares do catálogo. O catálogo como espaço expositivo tornava-se o dispositivo capaz de prolongar a efemeridade do tempo da exposição. No formato de uma publicação, suas dimensões espaciais e temporais passavam a ser traduzidas como número de páginas. Permitindo, ainda, deslocar o que sempre esteve vinculado como informação secundária ou registro de uma exposição para, ela própria, a publicação, tornar-se o veículo primário das práticas artísticas que ali se instalavam.

Em Xerox Book6 ou Livro das cópias7 (1968) Seth Siegelaub já havia legitimado este formato de exposição. Visitar essa mostra consistia, e perdura até o presente, em um ato de folhear e encontrar proposições artísticas que se prolongam nas 175 páginas da exposição impressa, e não mais em um número de dias de exibição.

Embora o Livro das cópias não tenha sido fotocopiado integralmente, e sim apenas a sua matriz, pelo alto custo que isto significava na época, o projeto sinalizava a reprodução como meio constitutivo da exposição e dos trabalhos que ali se inseriam. Meio, esse, que alargava profundamente a audiência de uma proposição artística e alterava a forma convencional de circulação e, principalmente, de sua recepção8.

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Em 1977, o MAC/ USP, realiza uma exposição denominada Poéticas Visuais, endereçada a exibição de múltiplos que se valiam da imagem e da palavra. Durante um mês o público que ia ao museu poderia, não apenas conviver com trabalhos enviados pelo correio por aproximadamente duzentos artistas, mas fotocopiar grande parte do que estava sendo ali exposto. Walter Zanini, diretor dessa instituição e também organizador da mostra junto com Julio Plaza, escrevia em seu texto As Novas Possibilidades o quão era decisiva a presença de publicações de artistas com essas investigações e de como não mais se submetiam aos condicionamentos da obra tradicional. Julio Plaza complementava em seu texto, Poéticas Visuais, como essas ações anartísticas, espécie de fenômeno samizdat9, eram fáticas na comunicação, promoviam trocas e possibilitavam reproduções de uns para os outros. Como uma exposição portátil10, o catálogo dessa mostra reproduzia todos os trabalhos que foram enviados pelos artistas e continua até hoje sendo fotocopiado entre pesquisadores e artistas.

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Ainda que tenha dito ‘Isso é muito mais do Seth do que meu’11, Lucy Lippard realizou projetos que, sem dúvida, configuravam-se como exposições dentro de publicações. O catálogo de fichas soltas para 557.087 (Seattle, 1969) e 955.000 (Vancouver, 1970), bem como o livro Six years of dematerialization 1966-1972 (1973), podem ser tratados como importantes exposições. Seu livro, seguramente, é um projeto curatorial disposto na forma de um grande arquivo, contendo exposições, ações, proposições, publicações e projetos que aconteciam de modo desmaterializados e em locais inesperados: dentro de revistas, livros, ateliês, livrarias, e uma série de espaços alternativos não institucionalizados. Seria algo como ela própria declarou: ‘é isso que está acontecendo, são essas as informações: faça alguma coisa com isso’12. E é nesse contexto que, por volta de 1975, Lucy Lippard e um de seus maiores interlocutores, o artista Sol LeWitt, iniciam um dos mais interessantes projetos curatoriais daquele período, inaugurado em 1976 e que permanece até o presente momento: a Printed Matter13.

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Em 1993, uma conversa e uma lista de artistas fazem surgir o projeto Do it. Bertrand Lavier, Christian Boltanski e Hans Ulrich Obrist eram os protagonistas deste projeto curatorial que, durante aproximadamente dez anos, existiu no formato de mostras que percorreram vários lugares na Europa. Em 2004, após a realização de uma versão para televisão e outra para a internet, foi lançado a versão impressa com proposições de 174 artistas. A exposição, a partir de então, pode ser encontrada em estantes de casa, cabeceira de cama, etc., num tempo que só é limitado pela durabilidade do material e pelo cuidado com a edição14.

Em 1997, outra conversa, dessa vez entre Christian Boltanski, Hans Ulrich Obrist e Agnès B, faz surgir o projeto point d’ironie, exposição itinerante feita de múltiplos impressos. Com uma tiragem de aproximadamente 100.000 exemplares, esses múltiplos são distribuídos gratuitamente em várias partes do mundo15. Muitos deles, conforme ressaltou Boltanski, realmente devem ir para o lixo. Mas há, também, uma grande parcela que, desde então, vem habitando os lugares mais distintos e improváveis, desde acervos públicos e privados à exposições, em paredes de um estúdio ou de um restaurante, como papel de embrulho ou como tema de pesquisa nas universidades.

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Quando realizei a primeira exposição dentro de uma publicação, o PF (2006)16, esses exemplos que acabei de citar me acompanhavam como referências17. Se, no início, denominei esta primeira iniciativa curatorial de espaço portátil, não tardou para que me apropriasse do termo exposição portátil, proposto por Walter Zanini no texto do catálogo da exposição Poéticas Visuais, uma vez que a ideia que rondava todo o projeto era a de que essa exposição pudesse ser transportada facilmente.

A portabilidade foi, portanto, algo que comecei a perseguir nas iniciativas curatoriais dali em diante. Quando fazia a segunda exposição, amor: leve com você (2007), o subtítulo tinha o objetivo expresso de potencializar essa ação de poder transportá-la para os mais distintos lugares. Do tamanho de um passaporte, essa exposição foi pensada para ser carregada dentro do bolso.

Coleção (2008), uma publicação realizada com carimbos, foi a exposição seguinte18. Paulo Bruscky era a referência mais imediata. Em 2003, na exposição Imagética (Curitiba), enquanto observava na Casa Romário Martins (um dos locais desta mostra) uma vitrine repleta de carimbos de Bruscky, não tive dúvida: saí da exposição segura de que aqueles carimbos só fariam sentido se pudessem ser utilizados e imaginei o quanto seria interessante poder levar as folhinhas impressas com os seus trabalhos19.

Em 2009, iniciei outro projeto de exposições que denominei de Conversas, cujo formato é o de entrevista ou de trocas de correspondências, e onde vislumbro o texto e a fala do artista como um trabalho de arte20. Motivações suficientes para editar, pouco tempo depois, dois textos que participavam de uma mesma exposição: ARTE E MUNDO APÓS A CRISE DAS UTOPIAS: assim mesmo, em CAIXA ALTA e sem notas de rodapé, de Fabio Morais e Daniela Castro (2010) e Pourquoi o mal?, de Jorgen Michaelsen (2011)21.

Pequenos textos, esboços, imagens e projetos, traduzidos como escritura em processo, passaram a ser objetos para a criação de outra série que intitulei de A2, assim designada pelo tamanho do papel que é oferecido a cada artista, e que tem sido pensada e apresentada de diferentes modos e formatos, a partir dos cortes e das dobras realizados neste espaço expositivo22.

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Não sabemos, de antemão, quais os itinerários ou percursos que uma publicação irá percorrer, porque são muitos. Sua mobilidade e seus desvios de trajetória, talvez, sejam suas mais instigantes qualidades. São, mesmo, garrafas lançadas ao mar e que qualquer pessoa pode encontrar ou receber, levar consigo e estender a sua duração, ativando-a e compartilhando-a em outros contextos. Como múltiplos que se propagam, cuja força está na circulação e na expansão do circuito da arte.


Notas:

[1] Texto publicado no Catálogo do 32o. Panorama da Arte Brasileira, Itinerário + Itinerâncias/ Seminário Decantações, Museu de Arte Moderna de São Paulo, pp. 267, 2011.

[2] Conversa realizada no período da exposição point d’ironie no Centro Internacional de Artes Gráficas (MGLC), em Liubliana (Eslovénia), em 13 de janeiro à 29 de fevereiro de 2004. www.mglc-lj.si

[3] November (1968), de Douglas Huebler, Statements (1968), de Lawrence Weiner, Xerox Book (1968), January 5-31 (1969), March (1969), July, August, September (1969), Studio International, July, August (1970), como editor, convidando seis críticos e curadores para que cada um realizasse um exposição no espaço de 8 páginas da revista, e Aspen Magazine (1971), entre outros projetos.

[4] A Seth Siegelaub Contemporary Art durou de outono de 1964 à primavera de 1966.

[5] Participaram dessa exposição: Douglas Huebler, Joseph Kosuth, Lawrence Weiner e Robert Barry.

[6] Participaram dessa exposição: Carl André, Douglas Huebler, Joseph Kosuth, Lawrence Weiner, Robert Barry, Robert Morris e Sol Lewitt.

[7] Denominação que Seth Siegelaub prefere adotar afim de que ninguém tenha a impressão errada de que o projeto tem alguma coisa a ver com a empresa Xerox.

[8] Ao utilizar e enfatizar o meio de reprodução como estratégia crítica a unicidade e autenticidade de um trabalho de arte, o Livro das cópias ecoa no formato semelhante àquele utilizado por Mel Bochner, em 1966, quando realizou a exposição Working drawings and other visible things on paper not necessarily meant to be viewed as art, na School of Visual Art, em Nova York, reproduzindo, a partir de fotocopias, uma série de trabalhos dos artistas participantes dessa mostra. Ressalta-se, contudo, outras questões levantadas por Mel Bochner nesta exposição, como a presença de um outro tipo de objeto de arte (a publicação), de um outro conceito de trabalho artístico (a exposição) e de um outro conceito de autoria (a exposição como sendo seu próprio trabalho artístico). Estas questões desdobram-se em outras tantas, mas isso exigiria um outro (instigante) texto.

[9] Prática de copiar e enviar clandestinamente livros e bens culturais produzidos durante o regime comunista nos países que compunham o Bloco Oriental.

[10] Denominação utilizada por Walter Zanini no texto As novas possibilidades no catálogo desta exposição.

[11] Declaração feita em entrevista concedida ao curador Hans Ulrich Obrist (OBRIST, Hans Ulrich. Uma breve história da curadoria. SP: Bei, 2010, p. 254.)

[12] Idem. p. 270.

[13] Atualmente localizada no Chelsea,195, Tenth Avenue, Nova York. No mesmo período, em Nova York, a artista Martha Wilson cria em seu próprio apartamento a Franklin Furnace Inc., um espaço também destinado à publicações de artistas. Considerado um dos maiores acervos do gênero, em 1994 foi vendido ao MoMA (NY). Um ano antes, em 1975, um outro artista, Ulises Carrión, em parceria com Aart van Barneveld, cria em Amsterdã a Other Books and So. Considerada a primeira livraria especializada em publicações de artista na Europa em 1979 transforma-se em Other Books & So Archive. Em 1974, em Toronto, o Grupo General Idea cria a Art Metrópole. A. A. Bronson, integrante desse Grupo, atualmente atua junto a Printed Matter.

[14] SCHULTZ, Vanessa. Lugar publicação: artistas e revistas. Dissertação de mestrado defendida no Programa de Pós Graduação em Artes Visuais, CEART/UDESC, Florianópolis, SC, 2008, p.82.

[15] Encontram-se, geralmente, em museus, bibliotecas e lojas da rede Agnès b.

[16] Com essa exposição portátil, surge a par(ent)esis – uma plataforma independente que criei em Florianópolis, SC, para pesquisa, produção e edição de projetos artísticos e curatoriais no formato de publicações impressas.

[17] Não posso deixar de mencionar também outra importante referência que foi a iniciativa de Helmut Batista com o jornal (e Catálogo) Capacete, durante o período de 2001 a 2004.

[18] Cada artista era representado por um ou mais carimbos, confeccionados mediante suas instruções, uma almofada com tinta de impressão e um bloquinho de folhas destacáveis, cujo verso continha as indicações sobre o trabalho e o propositor. Expostos sobre uma mesa, os carimbos ficavam à disposição do público para a realização de sua própria coleção, que, uma vez construída, poderia ser levada para a casa.

[19] Algum tempo depois, o livro/exposição de Hervé Fischer, Art et communication marginale: Tampons d'artistes, publicado em 1974, foi agregado como outra preciosa referência. Credito à Cristina Freire o acesso a essa publicação.

[20] Até o presente momento foram publicadas duas Conversas: Ana Paula Lima e Ben Vautier – Tudo pelo Ben (2009) e, Fabio Morais e Marilá Dardot – blá blá blá (2009). Em processo de organização e edição, a conversa entre Ricardo Basbaum e Alex Hamburguer.

[21] Ambos estavam expostos na exposição El mal de escritura: um proyecto sobre texto e imaginación especulativa, curadoria de Chus Martinez, no Centro de Estudos e Documentação do Museu de Arte Contemporânea de Barcelona, no período de 20 de novembro de 2009 à 25 de abril de 2010.

[22] Foram publicadas A2-Diego Rayck (2010), A2-Felipe Prando (2011) e A2-Paulo Bruscky. Em processo de organização e edição, A2-Gloria Ferreira e A2-Giorgia Mesquita. Parte de cada uma dessas publicações ou exposições individuais estão sendo postas em circulação. Outra parte, foi prevista desde o início desse projeto, para circular, a partir de 2013, como uma exposição coletiva, impressa e portátil.