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Espaço Portátil: Exposição-Publicação1

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“Exposições Portáteis”, como dispositivo curatorial, é um projeto desenvolvido na Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC e que contou com a participação de alunos da graduação 2 e da pós graduação 3, e uma série de artistas 4 que, no desenvolvimento desta proposição, foram sendo convidados.

Denominado pela sigla “pf” – forma desdobrada e abreviada cujo codinome inicial era “por fazer”, este projeto sinalizava a noção de obra como proposição, como instrução, cuja realização se daria a partir de uma participação.

Na sua origem, em meados de 2005, surgia como uma possibilidade de pensar a noção de Performance nas Artes Visuais tendo como base sua especificidade, ao mesmo tempo, sua distensão. Ou seja, interessava-nos pensar na performance realizada pelo espectador que de posse destas instruções poderia interpretá-las, realizá-las.

Na seqüência deste projeto, quando já estávamos de posse do material projetado em sua formatação final – um bloco de notas seguindo a lógica de emissão de faturas em que temos o original e a cópia –, partimos para uma outra discussão, que seria: como expô-lo, como veiculá-lo? De que forma poderíamos colocá-lo em circulação.

Uma das estratégias já havia sido pensada quando projetamos o formato de bloco de notas com suas folhas destacáveis e duplas (original e cópia). Essas folhas, contendo cada uma delas instruções na forma de desenhos ou textos, seriam endereçadas ao público participante. De baixo custo, seu objetivo, desde o início, também se expressava como um modo de alargar o espectro de audiência e participação, através de uma tiragem impressa e a permissão de uma tiragem ilimitada para reprodução.

Mas tínhamos ainda outros tantos dispositivos para criar, aprofundar, propor. Foi então que surgiu a noção de exposição portátil.

Ora, pensávamos que, se cada um poderia levar consigo este bloquinho, deveríamos, então, tratá-lo a partir deste pressuposto, como um espaço portátil, passível de ser ativado continuamente por cada um que estivesse de posse dele. Além disso, como uma estrutura móvel, cada uma destas proposições poderia habitar temporariamente um espaço expositivo com o mínimo de recurso ou sofisticação de montagem.

Imaginamos, então, um dispositivo curatorial dentro dessa perspectiva de mobilidade e circulação: o menor aparato de equipamento possível, todavia o suficiente para que pudéssemos, com cada mostra, não somente distribuir esse bloquinho, mas pensar no conjunto de sua apresentação e recepção. Sugerimos, portanto, como equipamento curatorial necessário, apenas uma parede (para que pudéssemos dispor as folhas expostas lado a lado); uma mesa (para colocar as pilhas de bloquinhos que estariam à disposição do público) e cadeiras (para que pudéssemos nos reunir em grupos e debater sobre esse projeto, estendendo sua participação, ampliando seus níveis de reflexão).

Sem dúvida, teríamos aí a possibilidade de vislumbrar a criação de um espaço relacional ou comunicacional, que, na origem deste processo, surgia sob a denominação de espaço de performação,5 como realização efetiva de uma participação que estaria iniciando nesse debate, mas que se estenderia à medida que cada participante levasse consigo uma matriz geradora de outros tantos espaços de performação.

A distribuição ou a dispersão6, sem dúvida, tem nos interessado sobremaneira. Pensamos que é a partir dela que podemos ampliar a participação e criar novos circuitos. Circuitos que vão além dos espaços circunscritos de museus e galerias, a partir de um espaço portátil que, uma vez acessado, pode ser transportado para a realização de uma obra em qualquer lugar, a qualquer hora, em diferentes contextos. Como um objeto transportável, uma espécie de estrutura de inspeção7 oferecida à participação.

Esse interesse por difusão e circulação de obras, conduzindo à formação de novos circuitos, extrapolando muitas vezes o meio físico de uma sala expositiva, trazem à tona alguns questionamentos do sistema da arte como um todo. Partes integradoras desse sistema, composto especialmente por artista, curador e espectador, podem se apresentar envolvidas de tal forma que se vêem, em um dado momento, ampliadas e/ou deslocadas de suas funções.

De posse dessas proposições, vislumbradas desde o início como deflagradoras de um contínuo movimento participativo – porque não existem como obras prontas, fechadas em si, mas superfícies abertas, distributiva e em permanente circulação –, essas partes tendem a não mais se apresentar isoladas. Como um conjunto, condição essencial para o desenvolvimento dessa proposição, surgem em forma de binômios: espectador-participador, artista-propositor, artista-curador, participador-curador e quantas combinações possíveis dentro desse sistema que, desde o princípio, surge como estrutura agenciadora e intercambiável8.

Somando-se à publicação como elemento estruturador da exposição, criamos também como desdobramento desse espaço portátil, uma versão na Internet. Na forma de índice (uma página onde contém todas as proposições da versão impressa), imaginamos para o espaço expositivo apenas um computador e uma impressora. O espectador, então, poderia visualizar cada um dessas instruções-obra, ampliando-a na tela, imprimindo-a, enviando-a para um arquivo pessoal ou para alguém, etc9. O ‘objeto’ passava a ser de sua propriedade na medida em que, na qualidade de participador, deixando de ser uma testemunha imparcial e colocando-se em ação, poderia realizar algumas dessas instruções.

Estas dinâmicas, enquanto proposições curatoriais, têm na base uma série de referências históricas extraídas principalmente da década de 1960, mas que também continuam recorrentes até os dias atuais. Assim, quando elaborávamos esse projeto, fomos acessando cada uma delas como forma de exemplificação. Muitas foram se tornando nossas mais preciosas referências e, ao término, já devidamente aderidas, achamos que deviam constar na publicação. No final do bloco-exposição listamos uma série de curadores, artistas e agenciadores. Em seguida, como uma espécie de jogo, listamos uma série de projetos, exposições, textos e proposições realizados pelos sujeitos acima mencionados. Uma forma, também, de ampliar a extensão deste projeto “Exposições Portáteis”, estendendo-o e conectando-o a outros, realizados em diferentes tempos, em diferentes localidades e contextos.

Junto às nossas tantas referências compartilhadas, considerávamos, por exemplo, um dos precursores de ações semelhantes a esta o galerista e marchand americano Seth Siegelaub, que, nos finais dos anos 60, em meio a uma enorme difusão de galerias em Nova Iorque, como uma espécie de contra corrente (talvez), fecha suas portas e estabelece-se na sala de seu próprio apartamento, fundando o que ele acreditava ser um verdadeiro espaço expositivo comunicacional, um local para debates e interlocuções, contatos e difusões de idéias. O passo seguinte, e quase imediato, foi lançar uma publicação – livro ou catálogo – como um espaço possível para o desenvolvimento e apresentação de uma exposição.

Não preciso de paredes (tão somente) para expor idéias seria uma das premissas de Seth Siegelaub instaurada em “Douglas Huebler: November – 1968”, quando, desprovido de espaço físico para realizar a mostra, apresentou-a na forma de catálogo; em “January Show” (1969), deslocou procedimentos usuais estabelecidos no sistema de arte, invertendo a relação entre a obra exposta e o catálogo. Dispondo apenas de alguns trabalhos em espaços alugados, afirmava que o verdadeiro espaço da exposição era o catálogo; que a presença física dos objetos dispostos nos espaços físicos era suplementar à publicação, tornando-a, portanto, informação primária. Ou seja, interessava-lhe, naquele momento, pensar em obras como informação que podia circular e, através de um meio constituído não apenas por objetos, mas também a partir de textos, desenhos e fotografias, expressar, sobretudo, ideias e germinações.

Em “Xerox Book” (1968), outra exposição-publicação, Seth Siegelaub legitima este formato, utilizando e enfatizando o meio de reprodução como estratégia critica à unicidade e autenticidade de uma obra de arte. A reprodução em série utilizava formato semelhante àquele proposto pelo artista Mel Bochner, em 1966, quando realiza a exposição “Working Drawings and other visible things on paper not necessarily meant to be viewed as Art” (Desenhos de trabalhos e outras coisas visíveis sobre papel não necessariamente feitas para serem encaradas como obras de arte), na School of Visual Art, em Nova Iorque, reproduzindo através de xerox, uma série de trabalhos dos artistas participantes da mostra.

Para Siegelaub, a fotocópia era utilizado como meio constitutivo da exposição e dos trabalhos que ali se inseriam. Meio que alargava profundamente a audiência de uma obra, alterando a forma convencional de distribuição e recepção de um trabalho artístico.

“Xerox Book” confirma e reforça o que Walter Benjamin já havia anunciado em seu texto “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” sobre a perda da aura, sobre a obra varrida da concepção de objeto único. Estabelecendo o livro como lugar para a produção e exposição, acentua-se e inaugura-se uma forma expandida de se pensar a obra de arte.

Livro ou catálogo, para Seth Siegelaub e todos aqueles artistas10 que compartilhavam dessa mesma atitude, passaram a significar a mesma coisa que um espaço de galeria significava para a maioria das pessoas. Documento, reprodução e obra se equivaliam e a publicação passava a ser um dispositivo que estabelecia então novas estratégias curatoriais.

Esses compartilhamentos se estenderiam e seria quase impossível se imaginar, depois de experiências como estas, que se distribuíam aos espectadores, a noção de obra a partir de uma autoria individual. Porque, através desse acesso, a exposição ou cada um dos trabalhos individualmente interpretados e realizados passaria a ser de todos.

Outra referência imediata que se colocava frente à esta noção de exposição portátil por nós desenvolvida, era o projeto “Do It” (1994), coordenado por Hans Ulrich-Obrist.

Empregando como referência histórica de sua estruturação conceitual a tática de remoção da mão do artista formulada por Marcel Duchamp, “Do It” toma de empréstimo, também, as estratégias estabelecidas nas instruções de John Cage, em suas (a)notações musicais, assim como as formulações de alguns de seus alunos, como George Brecht, Jackson Mac Low, Allan Kaprow, Dick Higgins, entre outros. Da mesma forma, parte, ainda, de referências extraídas dos cartões-eventos do Grupo Fluxus; das instruções de arte e vida postas em “Greapfruit” de Yoko Ono; da produção de objetos dos minimalistas através de desenhos esquemáticos, como em Sol LeWitt, Donald Judd, Robert Morris e Dan Flavin; além de toda a série de obras propositivas dos artistas construtores da Arte Conceitual.

De acordo com Hans Ulrich-Obrist, “’Do It’ foi pensado e concebido como um modo de exposição que deveria ajudar a desafiar as regras que geralmente governam a circulação de mostras de arte contemporânea. Desenvolvendo-se como uma exposição que não deveria aniquilar diferenças e reduzir a complexidade para um produto, (...) mas sim aumentar diferenças e complexidade, e propor novas 'temporalidades'”11.

Curadores/organizadores e artistas participantes desse projeto, salienta Obrist, buscam construir uma temporalidade diferenciada, que resista ao tempo formatado da cultura de exposição, estabelecido através da fórmula “começou-acabou”. Cultura em que, quando a exposição é desmanchada, tudo é novamente pintado de branco.

Estendida no tempo e dispersa nos mais distintos espaços que circula, sua participação é implementada através de uma versão dita domicilar, que, em forma de livro, de um programa de televisão e de um website, apresenta instruções feitas especificamente para uso doméstico12.

Espaços de experimentação por excelência, todas essas estruturas portáteis de exposição aqui apresentadas podem se desenvolver nos mais distintos lugares. Porque o trabalho existe como instrução – potência deflagradora de um movimento participativo, criador contínuo de um espaço de ação do sujeito participador.

Afirmam claramente, ainda, que uma proposição artística possui muitas maneiras de se constituir/construir. Provisória, pode ser expressada de inúmeras formas, apontando estratégias que se fazem muito mais como um processo coletivo do que como uma experiência individual.

Referências bibliográficas complementares:

ALBERRO, Alexander. Conceptual Art and the politics of publicity. Cambridge: MIT Press, 2003.
__________, NORVELL, Patrícia. Recording Conceptual Art. Berkeley: University of Califórnia Press, 2001.
BATTCOCK, Gregory. La idea como arte. Documentos sobre el arte conceptual. Barcelona: Gustavo Gili, 1997.
GODFREY, Tony. Conceptual Art. London: Phaidon Press, 1998.
LIPPARD, Lucy. Six years: the desmaterialization of the Art Object from 1966 to 1972. Berkeley, 1997.
OBRIST, Hans Ulrich. Do It. New York/Frankfurt: e-flux/Revolver, 2004.
____________________ Point D’Ironie. 1994. www.pointdironie.com
OSBORNE, Peter. Conceptual Art. London: Phaidon, 2002.
WOOD, Paul. Arte Conceitual. SP: Cosac & Naify, 2002.

Notas:

[1] Texto publicado na ARS – Revista do PPG em Artes Visuais/Departamento de Artes Plásticas, ECA/USP, Ano 4, No. 7, 2006, pp. 78-83.

[2] Participantes da Oficina: O espaço como configuração de um campo específico, no Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina (CEART/UDESC), Florianópolis, em 2005/2006: Amanda Cifuente (SC), Cássio Ferraz (SC), Claudia Zimmer (SC), Fabíola Scaranto (SC), Liomar Arouca (SC), Patrícia Scandolara (SC), Paula Tonon (SC) e Renata Patrão (SC).

[3] Participantes da Disciplina: Incorporações: agenciamentos do corpo no espaço relacional, no Programa de Pós Graduação em Artes Visuais-Mestrado, CEART/UDESC, Florianópolis, em 2006: Adriana Barreto (SC), Bruna Mansani (SC), Débora Santiago (PR), Edmilson Vasconcelos (SC), Gabrielle Althausen (SC), Giorgia Mesquita (SC), Paulo Damé (RS), Rosangela Becker (SC), Sandra Reis (SC), Silvia Guadagnini (SP), Tamara Willerding (SC), Traplev (SC) e Vanessa Schultz (SC).

[4] Ana Paula Lima (SP), Alex Cabral (PR), Brígida Baltar (RJ), Daniela Mattos (RJ), Julia Amaral (SC), Jorge Menna Barreto (SP), Laércio Redondo (PR), Melissa Barbery (PA), Minerva Cuevas (México), Nara Milioli (SC), Orlando Maneschy (PA), Raquel Stolf (SC), Ricardo Basbaum (RJ) e Yiftah Peled (SC).

[5] Por espaço de performação entende-se como sendo o espaço que surge do encontro do espectador com a obra-proposição, possibilitando a criação de uma estrutura relacional ou comunicacional. Ou seja, o espaço de ação do espectador estendendo portanto a noção de Performance como um procedimento que se prolonga também no participador.

[6] Esta noção de dispersão está diretamente ligada ao projeto denominado Point d’ironie, concebido por Christian Boltanski, coordenado por Hans Ulrich-Obrist desde 1994, com apoio institucional de Agnès b. Cada edição é distribuída gratuitamente numa seleção prévia de locais espalhados pelo mundo, tais como: lojas da marca Agnes b, museus, galerias, escolas, cafés, cinemas, etc.

[7] Tomo de empréstimo o termo estruturas de inspeção que era a denominação que Helio Oiticica atribuía aos seus Bólides, objetos que eram dados à manipulação e uso do espectador e, a partir daí, transformarem-se em espaços poéticos tácteis.

[8] Esta estrutura agenciadora e intercambiável parte de conceitos e idéias apresentadas pelo artista Ricardo Basbaum quando propõe os termos artista-etc/curador-etc como aquele que questiona a natureza e a função de seu papel, promovendo trânsitos entre as partes componedoras do sistema da arte e fora dela, a partir de híbridos que se instauram e questionam em novas combinações, tais como: artista-curador, artista-professor, artista-ativista, curador-artista, curador-diretor, curador-engenheiro, curador-produtor, entre outros.

[9] A primeira destas proposições, denominada TO BE DONE, foi realizada para o projeto Draw_drawing_2, mostra que integrou à Bienal de Londres, no período de 4 a 9 de julho de 2006, na The Foundry, Londres. Acesso no endereço: www.terreno.baldio.nom.br/tobedone.htm

[10] Lawrence Weiner, Carl André, Robert Barry, Douglas Huebler e Joseph Kosuth foram alguns dos artistas que participaram de inúmeros projetos de Seth Siegelaub.

[11] OBRIST, Hans Ulrich. Do It. Nova Iorque-Frankfurt: e-flux-Revolver, 2004, p. 11.

[12] O projeto Do It inicia em 1994 com uma série de exposições com obras-instruções, realizadas em diferentes locais, em diferentes paises. Dez anos depois, o projeto ganha a versão dita domiciliar, reunindo uma gama considerável destas participações. Em formato livro ou na web (www.e-flux) podemos acessar a qualquer momento e realizar qualquer uma das instruções ali contidas.